domingo, 31 de maio de 2009

Uma noite de estreia no S. Carlos, em Lisboa



Foi uma noite magnífica. Ontem estreou "Don Giovanni" de W.A. Mozart numa sala cheia e entusiasta com toda a garra, alegria e espírito festivo das grandes estreias mundiais. Lisboa e , principalmente o Chiado estavam animadíssimos na noite quente e feérica. Dentro do S. Carlos havia a azáfama habitual, circulavam flûtes de champanhe, homens e mulheres bem vestidos e elegantes. (Recordei com saudades terríveis as vezes que ali fui com o meu avô que, como era hábito naquele tempo, tinha sempre lugares cativos durante as várias temporadas.) Os habituées apressavam-se a tomar os seus lugares e o ambiente era de expectativa e excitação. Não admira, uma vez que se tratava do grande conquistador de Sevilha.
Esta ópera é uma das minhas favoritas. Música maravilhosa, um libreto genial do grande Lorenzo da Ponte, um tema que tem tanto de farsa como de tragédia, uma figura central emblemática. As feministas podem arrasar o D. Juan, apontar a sua impotência e até a sua homossexualidade - não são grandes notícias, toda a gente sabe que os grandes machões têm estas contrapartidas - a sua brutalidade, violência e falta de moral - o catálogo das conquistas (só em Espanha, 1003) a displicência com que trata as mulheres - bens de consumo, descartáveis e abandonadas, lançadas ao lixo mal provadas - o exagero na luxúria. Um glutão em todos os sentidos, um predador insaciável, um provocador cheio de bazófia e de indiferença perante o próximo. Mas que dizer daquelas mulheres insuportáveis? Da sonsa Dona Anna, à insuportável "lapa" da Elvira, passando pela pseudo ingénua Zerlina? Pelo menos, Don Juan é valente e engenhoso: é um estratega do amor, enfrenta os perigos - e também obriga o pobre Leporello a correr alguns - desafia o fantasma do Comendador, não se arrepende perante o castigo e deixa a sua marca perene nas fantasias femininas e masculinas. O célebre texto de Tirso de Molina, "El burlador de Sevilla y convidado de piedra" foi publicado em Espanha por volta de 1630 e tem conhecido, até aos nossos dias, a apropriação por parte de escritores, artistas plásticos, músicos, etc. (Só para citar alguns: Moliére, Lord Byron, E.T.A. Hoffmann, Pushkin, Kierkegaard, George Bernard Shaw, Albert Camus. )
É claro que a história também é interessante porque para além do confronto de géneros também existe o confronto de classes e o fascinante drama das relações humanas nunca inteiramente límpidas ou "puras", antes facilmente tentadas para o irresistível jogo da manipulação de sentimentos - relação Don Ottavio/Donna Anna, Don Juan/ Leporello, Zerlina/Masetto e todas as combinações possíveis entre eles.
Mas chega de elucubrações sobre o texto. Esta produção do S. Carlos é MAGNÍFICA. A Cenografia de António Lagarto é muito inteligente, com soluções magistrais e muitas referências à arquitectura, à escultura, a quadros e pintores célebres: Magritte, de Chirico, Ingres ("as odaliscas" lânguidas da ceia de Don Juan), sem esquecer os néons à Dan Flavin ou o piscar de olho à estrutura das gelosias andaluzes. Tanto a cenografia - extraordinariamente inventiva e sempre surpreendente - como os figurinos - um cruzar de referências verdadeiramente espantoso - são uma das mais valias deste espectáculo, encenado - e bem - por Maria Emília Correia com óptimos cantores. Saliento Nicola Ulivieri, um Don Juan cheio de garra, óptima figura e voz portentosa e desafiadora, o barítono Kevin Short, um Leporello vivo, sagaz, malandro e enganador e Musa Nkuna que começou timidamente o seu Don Ottavio e se desenvolveu numa voz e numa personagem admiráveis.
Gostei de Carla Caramujo como Donna Anna, a mostrar maturidade e elegância bem como de Chelsey Schill (Zerlina) que me pareceu ser - com a de Ulivieri - a voz mais bem sucedida da noite, ao longo de toda a ópera. Tive pena que a orquestra me parecesse um pouco chocha e que Katharina von Bülow tivesse falhado tanto numa Elvira que nunca se conseguiu impor. Mas estes pequenos percalços não diminuíram o brilho da noite. Gostei muito da sequência de cenas, sempre dinâmica e bem marcada, de soluções brilhantes como a aparição da estátua do Comendador no cemitério - normalmente, em outras produções, penosamente arrastada para o palco - que se mostra agigantada numa sombra - o cantor, o baixo Andreas Hörl é majestosamente mortífero e assustador - a festa dos camponeses é belíssima, a ceia final e a morte de Don Juan, arrepiantes e belíssimas . Mas a noite foi de estrelas, a ceia foi em boa companhia, cá fora passeavam-se milhares de jovens, famílias inteiras, crianças em carrinhos e avós mais lentas, o ar era doce e tenho a certeza que Don Juan, do seu Inferno, sorria ...
Nota: A ópera de Wolfgang Amadeus Mozart estreou no Teatro Nacional de Praga, a 29 de Outubro de 1787 com o grande Casanova entre os espectadores. A versão apresentada em Viena, a 7 de Maio do ano seguinte já apresentava algumas alterações - final "moral" mais adequado ao público da Corte e introdução de novas árias.

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