segunda-feira, 2 de julho de 2012

Apresentação de Mulher-Casa de Tânia Ganho, Porto Editora, Lisboa, 2012
10 Maio, 2012 Bertrand do Chiado, Lisboa
É do conhecimento de todos que os seres humanos – homens e mulheres – para não falar da maior parte dos animais – evoluem graças a dois pressupostos fundamentais: o da imitação e o da oposição. Imitamos modelos e numa fase mais avançada – se tivermos aquilo a que se chama personalidade – rebelamo-nos contra esses mesmos modelos. Mais tarde, se tivermos um mínimo de sorte e sabedoria, conseguiremos harmonizar estas duas facetas e até descobrir algo diferente. Portanto, o que fazemos para aprender é imitar: e assim reproduzimos sons e começamos a falar, reproduzimos gestos e começamos a andar e a ser autónomos, e por aí fora. Imitamos os que nos são próximos – por isso é que Tarzan andava a saltar de galho em galho como a sua mãe macaca – e os que são parecidos connosco – e, neste caso, as meninas imitam as mães e os meninos os pais, embora saibamos que isto não é obviamente linear. À medida que crescemos, cortesia das guerras internas hormonais – ou por qualquer outra razão mais profunda e menos óbvia – alguns de nós tendem a não imitar mas sim a entrar em confronto com os anteriores modelos. A maturidade, o crescimento mental vai decorrendo sempre a partir de estes factores – imitação, confrontação, confrontação, imitação (de novos modelos, de novas e sempre renovadas imagens exteriores. Se, a somar a tudo isto, tivermos o dom de sermos pensantes talvez possamos tornar-nos pessoas mais ou menos adultas mas há quem fique preso num ou noutro estádio. Tudo isto para dizer que na realidade somos essa espécie de cebola que se forma camada por camada, estrato por estrato, sempre, sempre, através dos mesmos movimentos de imitação e repúdio. Quero dizer que quando nascemos aterramos neste universo maluco, perdemos a segurança do silêncio e da escuridão, da passividade e do sono e somos catapultados para este magma de movimento, luzes, cores, sons, tensões, mudanças bruscas de temperatura e de humores. Que terror atávico não se apoderará de nós, que medo do desconhecido será aquele que nos faz chorar e berrar – e também respirar e abrir os olhos num espanto e no deslumbramento? Felizmente, e na maioria dos casos, o nosso instinto de sobrevivência leva a melhor e desatamos a comer, a dormir e a defecar alegremente e, enquanto andamos por cá, a cada nanossegundo, o corpo e a mente de cada um, entram num corrupio, sempre afadigados em transformações, mutações, processos químicos, habilidades físicas e mentais, paixões, amores, ódios e impulsos, depressões e impressões, euforias e desalentos. Crescemos inexoravelmente, mudamos dramaticamente e é necessário adaptar-nos, a cada instante. As mulheres com o apurado sentido do seu próprio corpo – não têm outro remédio, dadas as coisas “bizarras” que nos acontecem como ficar grávidas, termos filhos, sangrarmos todos os meses e coisas assim – são testemunhas privilegiadas destes fenómenos que, como disse, ganham uma vertiginosa velocidade desde o momento em que respiramos pela primeira vez. “A Natureza é misteriosa” diz Mara e não posso estar mais de acordo. Mas a que é que isto vem a propósito em relação a este A Mulher-casa? Não sei muito bem. Mas a imagem dos estratos que se vão formando, dos vários “eus” que nos vão envolvendo – como a cebola ou a inevitável “boneca russa” babuska – creio que foi o sentido espacial e arquitectónico da construção deste romance – que é imediatamente sugerido pelo próprio título do livro – que me levou a isto. Mara, a heroína ou mais propriamente anti-heroína é uma jovem mulher que vai viver para Paris com o marido Thomas e o filho pequeno, deixando para trás a segurança da província, onde tem a família e onde cresceu. A dicotomia grande cidade e província é um dos temas interessantes – o lugar de todas as oportunidades e de todas as tentações versus o cocoon, o ninho – mas não me vou alongar porque, embora importante na narrativa, deixo ao vosso cuidado o seu desenvolvimento. É importante salientar, no entanto, que Paris representa uma perspectiva de vida glamorosa e economicamente mais atractiva mas a verdade é que a nossa heroína passa do conforto para o luxo e esse luxo é, como veremos, uma prisão. Mara, na verdade é, ela própria um edifício, uma construção, uma sucessiva composição de menina, mulher e mãe, por sua vez encerrada numa outra construção – um lugar fechado, institucional, “militar”, a Escola Militar onde lhes é facultado um apartamento juntamente com os outros apartamentos onde vive o staff de um ministro para quem Thomas trabalha como escriba de discursos e comunicados – numa cidade, Paris, que, evidentemente possui como símbolo essa estranha construção que é a Torre Eiffel (embora do género feminino é um óbvio símbolo fálico, de poder e agressividade masculina, como diria a brigada freudiana, para não falar da “troupe” lacaneana) e que Mara vê, enquadrada na sua janela em grande plano, nas suas constantes metamorfoses, consoante o tempo atmosférico, a luminosidade, o dia ou a noite (aliás, o tempo é por ela medido a partir do aspecto da torre). E os caprichos que mademoiselle Eiffel apresenta reflectem-se nas mudanças de humor de Mara. Mas vejamos: Não vou contar a história porque terão de a descobrir e só vos digo que, até à última página, existe um suspense – a vida é feita de escolhas para usar um velho e bom cliché – e Mara é posta à prova (ou põe-se à prova) várias vezes. (Essa capacidade de sustentar a tensão na narrativa por parte da autora é um das múltiplas virtudes deste romance.) O suspense – cuja resolução talvez a própria Tânia Ganho tenha deixado para o fim – é fruto dos dilemas pungentes com que Mara se depara a cada instante. Na sua condição de mulher deverá privilegiar a carreira do marido – que ela ama – ou dedicar-se à sua arte? Deverá, ou poderá, capitular perante um situação para a qual é arrastada – embora voluntariamente mas que lhe desagrada – por Thomas (e que dá prazer ao marido) e sujeitar-se ou, pelo contrário, rebelar-se? Mesmo em pleno século XXI – um dos temas mais importante é o da condição feminina – será que o amor por um homem, um companheiro, poderá levar ao abandono de uma carreira, de um desejo de criatividade? E, abarcando uma situação ainda mais complexa, onde se encaixa, na vida de uma mulher, a maternidade? Diz-se que as mulheres dão vida quando têm um filho, uma filha, neste caso Raphael, a criança exigente e sôfrega de afecto. Será que ao “darem” uma vida têm de abdicar da sua própria existência? Ou será possível conciliar tudo? Mara não quer abdicar do seu corpo, da sua beleza, agilidade, desejo. Não quer, como acontece com muitas mulheres, diluir a sua carne, o seu sangue, os seus ossos, as suas fibras, no marido e no filho. Quer manter-se um ser autónomo, pensante, ardente, vibrante – e para tal existe a ajuda muito agradável e excitante de Mattéo, o atraente cozinheiro da residência ministerial. E agora reparem: Mattéo é o oposto de Thomas – é imprevisível, irregular, tem uma vida “fora de portas” (namorada) é, realmente a aspiração de qualquer mulher – imaturo, descomprometido, presente quando é preciso ao contrário de Thomas, responsável, cheio de trabalho, ausente em viagens mas pai do filho de Mara, calmo, seguro, mais “casa” do que Mara, muito mais “casa” do que o Mattéo “motard”, embora este esteja à distância de um lanço de escadas dentro da residência, desse microcosmos que reflecte a vida lá fora, com os seus dramas, tensões, perigos e prazeres. Mara é uma mulher entre homens – neste livro as figuras femininas importam pouco, embora tenha pena de não saber mais sobre a irmã de Mara – vivendo não o tradicional triângulo amoroso mas sim um quadrado amoroso composto por Thomas, Matteo e Raphael, a criança amada e simultaneamente causa de impaciência e irritação, preocupação e inquietação. Recapitulando. Tânia Ganho, para além de ser uma escritora muito culta – algo que é sempre agradável – e de ser capaz de, com infinita habilidade – como a de Mara com os seus chapéus – incorporar na narrativa referências oportunas a artistas (Louise Bourgeois e Annete Messager, p. ex ou a referência a Sylvia Plath cuja depressão esteve aliada ao parto até mais do que à traição do marido) à História, a outros escritores, a ambientes – Paris poderá agora ser visitada com a Mulher-Casa na mão – refere longamente temas tão actuais como o estatuto da mulher, a maternidade – é um alívio ver que Mara confessa não ter um instinto maternal apurado mas compreendemos como se debate na culpa e na ansiedade – o adultério e principalmente as exigências do corpo feminino e ainda o tema da hipocrisia, da duplicidade e do escândalo que Tânia desvia muito habilmente e muito oportunamente para a cena política. Não posso deixar de fazer mais duas referências importantes: a primeira é a que diz respeito a Balzac, presente no subtítulo, Cenas da Vida Íntima em Paris. Não é por acaso que o grande naturalista francês – que hoje em dia é estudado a partir de um ponto de vista “romântico” o que não deixa de ser curioso quando ele próprio queria deixar a sua marca de testemunha da grande “Comédia Humana” – é revisitado por Tânia Ganho; a segunda remete para uma espécie de espelho feminino de uma “Educação Sentimental” – um romance em que os dilemas são constantes – do não menos maravilhoso Flaubert que foi influenciado por Balzac, tal como Zola e Proust. Finalmente, creio que Tânia Ganho utilizou uma ferramenta muito interessante e cativante: escreveu um conto de fadas contemporâneo, subvertendo com elegância e ironia certos pressupostos. Não há dúvida que aqui se trata de uma princesa, casada com um príncipe que serve um rei, presa num castelo doirado mas com passagens subterrâneas – neste caso a escada cuja obscuridade protege as idas e vindas dos amantes – com uma alcova (o quarto da criança) – um pátio onde tudo pode ser visto (agora com câmaras de segurança – etc, etc.). Mara, a princesa com os seus belos trajes Sojia Rikiel deixa-se tentar por um plebeu cuja óbvia vitalidade e sex appeal a deslumbram – os plebeus, ainda por cima cozinheiros, cheiram a pão e a bolos, a coisas quentes e excitantes para os sentidos. (Repare-se que, quando ela compara o membro viril do marido com o do cozinheiro, o primeiro é teso e seco, o segundo flexível e húmido). Característico dos contos de fadas é também o facto de haver uma bruxa – a mulher do ministro, por exemplo – e de as personagens só ganharem esse estatuto, quando são tocadas pela varinha mágica da princesa, neste caso de Mara (que tem um pouco de bruxa vampiresca). Repare-se que as outras personagens nem nome têm, são o Ministro, o Ajudante de Campo, o Juiz, o Advogado, etc, um “toque” muito refinado e irónico. E fico-me por aqui dando conta de um último pormenor - o botão de madrepérola que Mara selecciona e guarda para marcar um dia bom – um jogo íntimo - remete para Lewis Carroll que fazia o mesmo com uma pedra branca. Hoje é um dia a assinalar porque estamos a celebrar esta Mulher-Casa da escritora portuguesa Tânia Ganho.

2 comentários:

t l r disse...

www.avidadeumjose.blogspot.com.br

nikita disse...

Fiquei com vontade de ler o livro. Gostei muito da sua definição do nascimento.
Mas a vida não é mais que imitação?