quinta-feira, 27 de outubro de 2011
Sylvia Plath - Na Caverna do Barba-Azul
Em 2000, por ocasião da publicação de ” THE JOURNALS OF SYLVIA PLATH – 1950-1962", escrevi o seguinte texto, que aqui fica, com algumas (ligeiras) alterações:
NA CAVERNA DO BARBA AZUL
Sylvia Plath, escritora e poeta americana – 1932- 1963
Como é que uma mulher de trinta anos, inteligente, bela e capaz de escrever a melhor poesia, foi capaz de se suicidar de uma forma tão brutal, deixando duas crianças pequenas e uma vida que poderia ter sido brilhante, em todos os sentidos? Esta é a questão colocada por todos aqueles que, muito tempo depois da sua morte, continuam obcecados pela poetisa americana Sylvia Plath. A publicação da versão (quase) integral dos seus Diários poderá fornecer algumas pistas aos leitores e estudiosos, sedentos de encontrarem mais um detalhe revelador da sua personalidade. Santa ou frívola, vítima ou carrasco, amante da vida ou fascinada com a morte é principalmente nos seus poemas que se devem procurar as respostas. No entanto, a excitação que continua a acompanhar esta edição, tornada possível depois da morte do Poeta Laureado Ted Hughes, que foi seu marido e, para muitos, a razão da sua perda, poderá lançar alguma luz sobre o assunto.
Sylvia começou a escrever os Diários ainda em criança. Chamava-lhes o seu “Mar de Sargasso” e funcionavam como o repositório das suas experiências e como exercícios de escrita. Eram, também, o lugar privilegiado onde ela registava as ideias para os poemas. É notória a sua ânsia de perfeição, o seu desejo urgente, intenso, absorvente, em relação à poesia. O seu rigor, a exigência em relação a si própria, detectáveis nos seus esforços quando ainda era aluna do Smith College, levaram Ted Hughes a descrevê-la como sendo “alguém excepcional” que podia ser “intensamente artificial” mas que juntava a tudo o que fazia, uma “excitação única”. No som e textura das suas linhas existia “uma sensação de profunda inevitabilidade matemática”, um fatalismo que contribuiu para a empurrar para o abismo da depressão e da neurose.
Estas páginas mostram bem o carácter obsessivo de Sylvia, a sua sexualidade exacerbada, o seu ciúme, a paixão pela escrita, as dificuldades de relacionamento com a própria mãe por quem sentia uma antipatia profunda ( desmentida pelo tom das cartas que lhe escrevia, nas quais era sempre a jovem americana prática e trasbordante de energia), o desgosto pela morte do pai quando ela tinha oito anos, o seu esgotamento, em 1953, que a levou a uma primeira tentativa de suicídio e que ela descreveu em The Bell Jar. (“A Câmpanula de Vidro”). Esta edição também inclui os dois diários que Ted Hughes manteve selados e escondidos dos olhares e interpretações até pouco tempo antes da sua morte: o primeiro data de Agosto de 1957, quando Plath se esforçava por se dedicar exclusivamente à sua poesia, e o segundo refere o espaço de tempo entre Setembro de 1959, altura em que ela iniciou sessões privadas de terapia, e Novembro desse mesmo ano, quando o casal decidiu abandonar Boston e voltar para Inglaterra.
Para compreender melhor os factos é importante conhecer a constelação de personagens que participaram, directa ou indirectamente nesta tragédia, em que os principais actores foram Sylvia, a beleza pálida que usava batom demasiado vermelho e Ted Hughes, o gigante sedutor, de voz portentosa que atraía com selvagem magnetismo todos os que dele se aproximavam. Em torno deste casal maldito, manteve-se vivo o mito da “bacante” que queria escrever sobre assuntos tabus, como os distúrbios mentais, a maternidade e a morte, e que dizia que devia ter estudado medicina em vez de literatura para ver “crianças a nascer e cadáveres a serem retalhados”.
Sylvia nasceu em 1932 em Boston, Massachusetts, de ascendência austríaca e alemã. Em 1955 terminou os seus estudos no Smith College (“summa cum laude”) e foi para Inglaterra continuar a sua educação. Foi aí que, a 3 de Março de 1956, a jovem americana que chegara recentemente a Cambridge munida de uma Bolsa Fullbright conheceu, numa festa, um “poeta brilhante”, “o único homem suficientemente forte à (sua) altura”. Para ele escreveu o seu melhor poema até então, chamado Pursuit, que fala de uma pantera que a persegue até à morte e a quem ela lança o seu próprio coração, numa tentativa para a apaziguar. Esta premonição fatal marcou o início de uma relação trágica e tumultuosa cujas sequelas se têm feito sentir, como um terramoto, muito para além do suicídio de Plath em 1963 e da morte de Ted Hughes, vítima de cancro, em 1998.
Este primeiro encontro ficou, como de resto toda a vida do casal, bem documentado. No poema The St. Botolph’s Review, incluído no famoso “Birthday Letters”, o volume de poemas que Hughes publicou antes de morrer e que funciona como o seu testamento literário, ajuste de contas e pacificação com Sylvia, Hughes conta como ela o mordeu na face até fazer sangue e como ele lhe roubou um brinco e um lenço azul, (para Plath o lenço era vermelho), que mais tarde encontrou num bolso. Casaram em Junho desse mesmo ano. Os primeiros tempos da sua relação foram uma espécie de milagre, o encontro perfeito de duas mentes possuídas de ardor criativo e amoroso. Mudaram-se para Boston, onde passaram um tempo de relativa felicidade, a ensinar e a escrever. Mas Plath tinha já atrás de si, uma longa história de depressão, a que não era estranha a conturbada e muito freudiana relação com o seu poderoso e assustador pai, (o tenebroso professor Otto, criador de abelhas), que morrera quando ela tinha oito anos e cujo fantasma a perseguiu durante toda a vida. Hughes, pelo seu lado, era um homem extremamente promíscuo, sexualmente, e que sabia como atrair poderosamente as mulheres. A sua infidelidade era notória e fazia parte da sua natureza, tanto quanto a morte fazia parte da de Sylvia.
Ted Hughes é, assim, frequentemente apontado como o “ogre” que arrastou Sylvia para a sua destruição. Até à sua morte, e apesar da sua enorme importância como Poeta Laureado, ele foi considerado como uma espécie de “Barba Azul”, uma reputação que o seu gosto pelas ciências ocultas contribuiu para acentuar. A sua irmã Olwyn, executora testamentária e educadora dos seus filhos, queixou-se sempre dos problemas que ele tinha com as mulheres e tudo fez para mitigar as acusações de que foi alvo, principalmente por parte das feministas.
A rica e extravagante escritora Emma Tennant ( n. 20 Outubro, 1937) foi uma das suas amantes. Emma pertence a uma família antiga e cheia de pergaminhos: a sua tia avó era Margot Asquith, mulher de um primeiro-ministro, Colin, o seu irmão mais velho, namorou a princesa Margaret, chegando a oferecer-lhe uma casa nas Caraíbas, a sua sobrinha é a super modelo Stella Tennant e um tio, Stephen Tennant, foi um esteta famoso. Emma foi quem comparou Hughes sucessivamente a “Barba Azul”, o mágico falhado que atraía irremediavelmente as mulheres com modos encantadores que escondiam a sua natureza predadora e o seu gosto pelo sangue, e a Mr Rochester, o herói do romance Jane Eyre de Charlote Brontë, outra dessas figuras que as mulheres vêem como a promessa do cumprimento de um rito de iniciação, o desvendar de um conhecimento perigoso mas sedutor.
Lobo, touro, garanhão, leão, são estas as imagens que Tennant associa a Hugues, com quem manteve uma relação intermitente, desde a primavera de 1977 até ao outono de 1979. Em “Burnt Diaries”, publicados em Outubro de 1998, no mesmo mês em que o seu antigo amante acabaria por morrer, Tennant conta como se deixou seduzir por Hughes. “ O seu rosto, semelhante a uma dessas estátuas da Ilha de Páscoa, parece dominar a paisagem circundante: irritação, certeza e orgulho conferem uma espécie de impassibilidade aos seus traços mas, como que a contragosto, um sorriso leve e nervoso, brinca-lhe nos lábios. Será que ele está tão devorado pelo medo como eu, na perspectiva do nosso encontro? “ E mais adiante questiona-se se “esta efígie, este deus de beleza masculina, pleno de crueldade” não terá prazer em devorar mulheres (artistas), como ela. Fascinada pela auréola de tragédia e pelo mito que acompanhou sempre a figura de Hughes, Tennant recorda a histeria, o desregramento sexual e emocional que parecia comandar a sua vida e a de quem dele se aproximava demasiado.
O destino das antecessoras de Tennant não pode ter sido mais cruel: a loira e pálida Sylvia suicidou-se em 1963 e a morena Assia Wevill fez o mesmo, em 1969, levando consigo a filha de ambos. Segundo certas testemunhas, Hughes foi um pai extremoso para Frieda e Nicholas (os filhos que teve de Sylvia) mas portou-se de uma forma inteiramente diferente em relação a Shura, a filha que teve de Assia. (Uma vez deu vinho a beber à criança para que esta dançasse para os convidados que ele tinha para jantar.)
Depois destas tragédias, Hughes tornou-se um recluso, casou outra vez, em 1970, (diz-se agora que a mulher, Carol Orchard, também tentou o suicídio) e levantou um muro de silêncio em torno da sua vida privada, só voltando a falar do seu relacionamento com Sylvia na já referida obra, “Birthday Letters”, 88 poemas que expõem o choque de titãs que foi a sua vida em comum (“O teu fantasma, inseparável da minha sombra…”) e lançam alguma luz sobre a relação neurótica do casal. Mas Hughes nunca se livrou da atmosfera de escândalo que sempre o rodeou e que ele usava como um poderoso afrodisíaco, como uma espécie de amuleto encantatório. O facto de se interessar pelo xamanismo e pela magia negra, só contribuiu para acentuar a ideia de que ele era um monstro.
Sylvia sentiu no corpo, “até aos ossos” a dor excruciante provocada pelas suas infidelidades. Em 1958, quando ainda estavam em Boston, discutiram selvaticamente quando ela o encontrou com uma mulher. No ano seguinte voltaram para Inglaterra e instalaram-se em Devon. Em Julho de 1962, Sylvia soube do affair de Hughes com Assia Wevil. Separaram-se e ela foi viver para um apartamento em Londres. Durante os poucos meses que lhe restavam de vida escreveu os seus melhores, mais iluminados e mais pungentes poemas. Numa manhã gelada de Fevereiro de 1963, enquanto os dois filhos pequenos dormiam no quarto ao lado, convenientemente isolados e com leite à cabeceira, ela meteu a cabeça no forno e ligou o gás. Ninguém apareceu em seu socorro. A salvação teria sido difícil. Sylvia estava há muito condenada pela sua depressão crónica e pelo fatalismo trágico que sempre a acompanhou desde criança. Quem a conheceu diz que ela tinha uma tendência marcante para a “teatralidade”, para um exacerbado desnudar de sentimentos que a deixava em carne viva. A sua biógrafa Anne Stevenson fala de uma “dualidade libidinosa”, de um “eu” profundo cheio de violência e fúria, que ela reprimia sob a capa de uma aparência cuidada e elegante”. Tudo isso ficou documentado: nos poemas, contos, Diários, em The Bell Jar, o romance autobiográfico publicado, sob pseudónimo, em Janeiro do ano da sua morte. O seu primeiro volume de poemas, The Colossus foi publicado em 1961 e a sua principal colecção de poemas, Ariel , uma espécie de “crónica” do seu suplício, foi publicada postumamente, em 1965. Quanto aos “Collected Poems” receberam um prémio Pulitzer, também a título póstumo, em 1982. O manuscrito de um romance inacabado, intitulado “Double Exposure”, desapareceu em 1970.
Mas a beleza e força das suas palavras provocaram tal comoção que ela se tornou uma espécie de santa sacrificada no altar da misóginia masculina, uma mártir abandonada por todos, uma mulher que fora deixada entregue a si mesma, sem que o marido levantasse um dedo para a ajudar. Nos momentos imediatamente a seguir à sua morte, este, como seu executor testamentário, (apesar de separados, eles ainda estavam legalmente casados) destruiu parte dos Diários “para proteger os filhos” e apoderou-se da sua obra.
“Será que a grandeza literária é ainda possível”, perguntou Susan Sontag num dos seus ensaios. Será que, no caso de Sylvia Plath, essa “grandeza” poderá continuar a resistir a anos e anos de especulações, análises exaustivas e muitos mexericos que envolveram (e continuam a envolver) a sua vida e a de todos os que dela se aproximaram? A sua história, intimamente ligada a uma obra genial, aparece-nos como uma verdadeira tragédia isabelina, cheia de golpes de teatro, de violência, de sangue e de muitas lágrimas. A sua morte continua a ser um mistério e conferiu-lhe a glória que tanto procurou em vida. O seu sofrimento foi o motor que transformou a sua arte em algo sublime. Ela foi capaz de descrever, como ninguém, os meandros da solidão, da angústia, da raiva e da fúria. Ao ritmo encantatório das suas palavras, como por magia, os objectos mais banais ganharam estatuto de símbolos de uma vida exaltada e exaltante e os actos mais comuns transformaram-se em gestos de sublime heroísmo.
THE JOURNALS OF SYLVIA PLATH – 1950-1962. Editados e anotados por Karen V. Kukil, Faber and Faber, 24 Março 2000. Uma edição (quase) completa. Só faltam dois Diários: um, que parece ter-se perdido e outro que relatava os últimos dias de Sylvia e que foi queimado por Ted Hughes. Este, em 1982, co-editou uma versão muito “censurada”, que cobre, com muitas lacunas, os anos de 1950 a 1953.
Faltam também, mas não há a certeza de que alguma vez tenham existido, dois cadernos de notas, referentes aos dois anos que se seguiram à sua tentativa de suicídio, em 1953.
Leituras Complementares:
BIRTHDAY LETTERS de Ted Hughes, Faber and Faber, Abril 1999
BURNT DIARIES e GIRLITUDE: A PORTRAIT OF THE 50S AND 60S de Emma Tennant, respectivamente, Canongate Books, Outubro 1999 e Jonathan Cape Books, Abril 1999
WOOROLOO – POEMS de Frieda Hughes, Harper Collins, Outubro 1998. Frieda Hughes tinha apenas três anos quando a mãe morreu. Ao contrário do que se possa pensar, ela afirma que o pai sempre a educou, e ao irmão mais novo, na recordação da mãe. “Cresci a pensar nela como num anjo”. Frieda diz também que só percebeu quão famosos eram os seus progenitores quando teve de lhes estudar as obras, na escola. Ela própria começou a escrever poemas na juventude. Depois de uma adolescência tumultuosa marcada pela anorexia e por um casamento precipitado, aos 19 anos, viveu durante algum tempo na Austrália em Wooroloo, um local que serve de título ao seu volume de poemas. Casada com um pintor húngaro Frieda é também pintora e autora de livros para crianças. Sobre o culto que rodeia a figura da sua mãe, revolta-se contra aqueles que “a viram e tornam a virar como carne em carvões em brasa” e afirma que, apesar de sentir que nunca saberá a verdade sobre o seu suicídio, não deseja remexer em feridas antigas.
WHERE DID IT ALL GO RIGHT de A. Alvarez, Richard Cohen Books, Setembro 1999. O crítico e escritor A. Alvarez declarou mais tarde que falhou no seu apoio a Plath. Foi ele quem deu abrigo a Hughes quando este saiu de casa e foi ele também quem passou o último Natal (de 1962) com Sylvia. “ Falhei como amigo. Tinha 30 anos e era estúpido. Não percebia nada de depressões” disse Alvarez numa entrevista. Esta autobiografia complementa “The Savage God”, uma obra que relata e analisa o suicídio de Plath.
Nota: O filho de Sylvia Plath e Ted Hughes suicidou-se na sua casa no Alaska, em Março de 2009, 46 anos depois da mãe. Nicholas (Nick) era biologista marinho e sofria de depressão.
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