quarta-feira, 13 de junho de 2012
Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
A 10 de Junho de 2012, escrevi no Facebook o seguinte comentário:
Em 1578, depois de saber da tremenda derrota em Álcacer-Quibir, e com as tropas castelhanas a aproximarem-se de Lisboa, Camões escreveu: " A minha Pátria, que me era tão cara, está moribunda. Apraz-me não só morrer nela mas também com ela."... Portugal passou a província de Espanha em 1580. Nesse mesmo ano, morreu Camões, a 10 de Junho.
Não sou dada a nacionalismos mas parece-me estranho que se celebre um País no aniversário da morte de um homem que foi mal tratado pela sua Pátria, que a amou apesar de tudo e que "morreu com ela". Não poderíamos ser um pouco menos mórbidos?
O actor e escritor André Gago ("Rio Homem") escreveu este brilhante
texto, cuja leitura recomendo:
O Dia de Camões surge como uma data incelebrável, entalada pela ideia de querer celebrar o poeta, assinalando ao mesmo tempo o Dia de Portugal e o Dia das Comunidades Portuguesas. Ou seja, este dia é uma espécie de Rossio na Betesga. Cerimónias oficiais e comendas à parte, este dia não é, de facto, celebrado pelos Portugueses, senão para apanhar ar e aproveitar os descontos nas grandes superfícies comerciais. Olha-se para o que o 10 de Junho tem para oferecer como se olha, por vã curiosidade, para a ementa turística dos restaurantes. É mais barata, mas preferimos comer outra coisa. De Camões então, neste dia, no fundo, nada se celebra. Então, porquê este Camões, entalado entre tanta pompa de Estado, tanta ideia de nacionalidade? Má consciência? A pátria sente-lhe a voz de avô egrégio? Essa Pátria onde “Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões", como bem pintou, por palavras, o velho Almada Negreiros? Imagina-se a Pátria, com combalido arrependimento, a proclamar, em manifestação de massas: “Abaixo as tenças em atraso”? Na verdade, ter o nome de um poeta maltratado, como os demais, elevado a feriado nacional em celebração da pátria é mesmo coisa portuguesa, ou seja, não faz sentido nenhum. Mas com isto, Portugal consagra-se como dando aos seus poetas uma importância maior do que outras nações do Mundo — o que é falso. Sim, é verdade que Wilde morreu mal, e que tantos outros acabaram miseravelmente os seus dias. Mas não é preciso ser cego para ver que, pelos séculos fora, os seus nomes foram genuinamente aplaudidos e geraram um apreço acrescido pela cultura — um apreço que os portugueses nunca conseguiram, genuinamente, ter. Portugal (entidade abstracta, já lá iremos) muito bem finge perante o Mundo ter apreço pelos seus artistas — fê-lo admiravelmente na Europália 91, na Lisboa 94, na Expo 98, no Porto 2001 —, quando, na realidade, detesta o seu cinema, o seu teatro, a sua dança ou a sua literatura. E por que razão detesta Portugal (entidade abstracta) esta emanações que pertencem, por definição, ao campo da abstracção? Porque a ideia de Portugal se fez glosando o que pertence ao domínio da abstracção, transportando-o para o domínio do real. Ou seja, porque a ideia de Portugal se fez de mitificações a partir do real, e não a partir da imaginação, quer dizer, da criação artística. Muito poderia ser dito a respeito dos próprios fundamentos da realidade, mas detenhamo-nos nos exemplos mais flagrantes: Camões, para começar. Camões precede Shakespeare no tempo, e é pena que nunca se tenham conhecido. Shakespeare é universal, Camões é um espírito universalista. A universalidade do primeiro é imanente, porque a sua obra a ilumina; a universalidade de Camões é inferida, porque nos ajuda a fazer luz sobre as sua referências. Camões é desesperadamente clássico, procurando agarrar o tempo que o antecedeu, Shakespeare tornou-se um clássico graças ao tempo que lhe sucedeu, e que ele ajudou a desvendar. Há, todavia, uma coisa que os aproxima, mas claramente os distingue: a paixão da sua biografia. Ao Shakespeare, todos classificam de super-homem. Incrédulos de que um único homem possa ter vivido e, sobretudo, produzido tanto, muitos procuram furtar-lhe a personalidade, denunciando-o como uma fraude, acusando-o de ser nada mais que um incrível ghost-writer. Ainda por cima, um tipo do teatro! Como é que alguma vez um tal génio literário poderia ter florescido sendo actor e produtor teatral? Ná. Cheira a esturro. Já o Camões é um super-homem incontestado: a sua biografia comprova-o, sem margem para dúvidas. Camões é, como se diz em inglês, bigger than life. E isso, para quem não gosta devidamente da sua lírica, é superior à obra. Enfim, para os portugueses — que não gostam de literatura, nem de cinema, nem de dança, nem teatro —, Camões-ele-mesmo é infinitamente mais interessante que a sua obra. E foi, porventura, por isso que lhe dedicaram um Dia. Não por causa dos versos, mas por causa do episódio trágico-marítimo. Que importa as imagens que emanaram do seu espírito? O que é de valor é o ter salvo manuscritos náufrago, ser cegueta de batalha, ter sido recebido por sua (dele) majestade, ser Trinca-Fortes, um tanto marialva avant la lettre, e ter morrido à fome. E, graças aos amores proibidos e aos desamores a custo suportados, associados a um certo espírito de capa e espada, Camões é como se fosse o nosso Cyrano de Bergerac, com a diferença de “Cyrano” ser uma obra de ficção de um autor — Edmond Rostand —, que tem por base uma personagem real, enquanto Camões é uma personagem real que tem por base a ficção de uma data de autores anónimos, conhecidos pelo cognome de Os Portugueses. Ora a questão é que se não esgota aqui a incapacidade deste colectivo autoral deixar a capacidade de abstracção por mãos alheias — ou deveríamos dizer antes que, à abstracção, Os Portugueses contrapõem o triunfo do literal? Não, não somos o país de produções fictícias de Quixotes, Cides, Mosqueteiros, Leares, MacBethes, Faustos, Montes Cristo, Beatrizes ou Werthers. Para quê inventar, quando temos um Dom Sebastião? Fraco exemplo? Nem tanto, de um rei de que se aguarda coisa tão tamanha como o regresso do Hades numa manhã de nevoeiro. Claro que esse episódio por publicar, por assim dizer, não é biográfico, é uma criação genial — mas que está submetida ao serviço de uma hagiografia histórica. Então e uma Rainha Santa Isabel? Em plena democracia, brincar com esta figura foi o suficiente para suspender um programa humorístico na televisão pública. Com certas ficções, sobretudo as literais, não se brinca. O milagre das rosas é quanto baste, para uma realeza ficar na história por perpetrar milagres reservados a poucos. Joana d’Arc, real até ás cinzas, ultrapassa a Rainha Santa em ficções (livros, filmes, obras sinfónicas) baseadas na sua pessoa? Pois, mas fez por isso. Deu, passe a expressão, o corpo ao manifesto. Quer dizer, os seus actos foram palpáveis. Milagres, qualquer um faz, mas as coisas que Joana d’Arc fez poucos as fariam. Que dizer, porém, então dos amores de Pedro, o Cru, e de Inês? Haverá Tristões e Isoldas que se lhe comparem? Está bem, temos Julieta e Romeu, mas... são personagens inventadas! A lista de literalidades, expressão nos antípodas da abstracção e que, portanto, nada tem que ver com literatura, é extensa, e foi propositadamente acrescentada e engrandecida para ofuscar heróis de improváveis ficções nacionais que lhes tenham tentado fazer frente: Mouzinho de Albuquerque, Alves dos Reis, Fernão Mendes Pinto (por mérito próprio) ou, por exemplo, Vasco da Gama. Este último português, muitas vezes referido como detestável, conseguiu a proeza de ser a positiva personagem central de uma ópera de Giacomo Meyerbeer, “L'africaine”, estreada em 1865. A ópera caiu no esquecimento, mas imaginem o que seria nós, os portugueses de hoje, convivermos com um célebre personagem de ópera, nosso conterrâneo, cujas árias fossem trauteadas alegremente, e desde a infância, pelos cidadãos de todo o mundo, como se faz com o Fígaro ou a Flauta Mágica? Conseguem imaginar? O nosso “Nixon in China”, um século antes (sim, esta não é trauteada por infância nenhuma em parte alguma do Mundo, mas é o exemplo da estranheza de uma personagem histórica elevada a protagonista de uma ópera)? E conseguem, já agora, citar outra personagem real de uma ópera do século XIX de cujo nome se recordem, e trautear um trecho da sua ópera? Não? Pois bem: imaginam a janela de oportunidade que se perdeu para o real imaginário da ficção da portugalidade, e que se esfumou com esta personagem perdida do universo operático, em virtude do desaparecimento precoce do compositor? Fatalidades. Há o teatro literal da vida real do nosso Fernando Pessoa imaginário, há o sacana do Salazar que consegue inspirar tesões de residência oficial a proto-cineastas incapazes de fazer o verdadeiro filme pornográfico das suas vidas (e que continua a fazer capa para êxito de vendas dos nossos orgãos de comunicação “de referência” à custa da fantasia porno-serôdia da criada de servir), o fabuloso Bocage e o imperador Vieira, de que se conhecem, claro está, mais as biografias do que a obra. Portugal, de brandos costumes feito, tem o vício de elevar os seus filhos e filhas mais notáveis ao panteão de uma certa ficção que faz de si mesmo — elegendo a literalidade dos exemplos, ainda que distorcidos e manipulados, por oposição à abstracção da referências. O Camões tem alguma culpa nisso, quando quis emparelhar os nossos prosaicos conquistadores das Descobertas às figuras míticas da Antiguidade. No fundo, foi ele que começou. E, à força de todos nos acharmos dignos de uma epopeia, não nos apercebemos da excepcional importância do simbólico. Camões deu demasiado valor ao patriotismo, e quis contribuir para a ficção desta sensação a que chamamos Portugal. Graças a ele, qualquer carapau alcandorado ao poder ou empoleirado nos ramos mais altos da escala social passou a ter dos artistas esta visão: a de que servem, essencialmente, para os fazer passar à História. A mim a feitoria, aos artistas o meu retrato. Felizmente, a posteridade verdadeiramente universal recorda sempre, acima de tudo, o nome do pintor. Isso até no caso do Nuno Gonçalves é verdade. Mas, azar ou sina nossa, os seus celebrados painéis são, essencialmente, uma fotografia de Estado — nada de Vénus à Botticelli, Joões Baptistas à da Vinci ou homens de turbante vermelho à van Eyck. Resta, pois, saber se a posteridade de Portugal é universal. Para que assim fosse, e uma vez que o Infante Santo (o nosso único homem com algo que se assemelha a um turbante), o Vasco da Gama, o Dom Sebastião ou a Rainha Santa Isabel, para não falar do impronunciável nome do nosso Camões (o melhor que se consegue é Camóis), não são exactamente personagens queridos e universalmente rememorados, o nome de uns quantos artistas dava jeito. Para que isso aconteça, não ajuda grande coisa dedicar-lhes um Dia ou premiá-los com uma comenda: bem melhor seria assegurar-lhes alguma prosperidade ao longo dos restantes dias do ano.
André Gago
10 e 11 de Junho de 2012
(isnpirado por um post de Helena Vasconcelos)
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