NOTA: Este texto foi escrito para a revista ELLE, em 2009, quando da exposição individual de Michael Biberstein na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa.
Fim de uma tarde do Verão alentejano: enquanto o sol desce relutantemente no horizonte, o pintor Michael Biberstein fala da sua próxima exposição na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa . Com gestos pausados abre o computador e mostra a maqueta do espaço e fotografias de duas pinturas que irão fazer parte da mostra. Ainda não está tudo pronto e o próprio artista gosta de manter um certo suspense. Mas é possível compreender que nada é deixado ao acaso e cada pormenor - o volume das salas, a exposição à luz , o recuo necessário ao espectador - é estudado, ajustado e aplicado. Discute-se a alteração subtil no tratamento da cor, a luz doirada que parece emanar das várias camadas translúcidas de tinta, rasgadas por uma ocasional aparição de azul, a sugestão de algo etéreo e simultaneamente solar, mais apropriado à atmosfera deste lugar, um “Monte“, confortável e acolhedor, implantado num vasto terreno, onde Biberstein vive, quase em permanência, com a mulher, a escritora Ana Nobre de Gusmão. O artista, que está prestes a completar 60 anos, mostra a sua faceta bem disposta e tranquila e hoje, como aliás é costume, o jantar está a ser preparado para uma dezena ou mais de convivas e há gente à nossa volta que se afadiga, ajudando aqui e ali. Biberstein, o criador filósofo, o homem que aprecia a calma e o sossego, o seu trabalho e a família, o viciado em música e em cinema de autor, é o mesmo que se irá sentar à cabeceira da mesa, qual patriarca benévolo, presidindo ao animado repasto que reúne pessoas vindas dos mais variados lugares, de todas as idades e profissões. A conversa não pára, cruzam-se copos, pratos e travessas, a luz desvanece-se por detrás da colina. É a hora mágica alentejana quando o silêncio se instala por momentos e as vozes se calam, para melhor apreciar o momento. Retoma-se a fala, come-se e bebe-se, acendem-se lanternas e velas - que atraem milhares de insectos - mas nada afecta o bom andamento da refeição nem a excelente disposição. Afinal, estamos na Fonte Santa, lugar de importantes peregrinações desde tempos imemoriais, o espaço onde se encontram vestígios arqueológicos que atestam o facto de que aqui se instalaram populações, ao longo de milénios. A proximidade de um rio pode explicar a predilecção por este local e nós todos, em pleno século XXI, talvez sejamos atraídos pelo mesmo desejo atávico de ter água por perto. É possível que seja essa uma das razões - a outra é, evidentemente, a afabilidade e disponibilidade dos anfitriões - que faz com que este sítio seja ponto de encontro, de discussão e criatividade, para o qual convergem todos aqueles que desejam partilhar o convívio com o casal Biberstein. Na casa, quase permanentemente ocupada, há sempre lugar para mais um.
Mas como foi que um pintor suíço, amante das montanhas geladas e austeras do seu país, adepto ferrenho do esqui que praticou com entusiasmo até ao acidente que o fez abrandar o ímpeto, trocou a bruma e a neve pela ondulação suave das terras alentejanas, com a sua atmosfera agreste e selvagem?
Michael Biberstein nasceu em 1948 na cidade de Solothurn, entre Berna e Basileia, com dupla nacionalidade, de pai suíço e mãe americana. Quando os pais se divorciaram, optou por seguir a mãe quando esta regressou aos Estados Unidos e aí estudou e aprendeu muita coisa, nesses turbulentos anos 60. O professor que mais o marcou foi David Sylvester, o grande mestre e crítico inglês de História de Arte, e foi sob a sua influência que começou a delinear um caminho artístico, enquanto se deixava cativar pela filosofia hippy e se envolvia a fundo nos movimentos cívicos e pró Direitos Humanos, numa América em efervescente mudança. Frequentou Swarthmore, uma Universidade quaker , o que o poderá explicar o seu desejo de viver com simplicidade, o seu pacifismo drástico e até uma certa austeridade puritana. Ao longo desses anos 60 e princípios de 70 levou uma existência nómada - atravessar o Atlântico era uma rotina que o levava regularmente à Europa - e acabou por se instalar na Grécia, com a primeira mulher, de quem teve duas filhas. A sua carreira como artista começou nos Estados Unidos mas foi na Suiça que expôs pela primeira vez. Um convite para vir a Portugal e a amizade que estabeleceu com o artista Julião Sarmento transformaram a sua vida. Aqui conheceu a sua segunda mulher e por cá ficou, com muitas viagens pelo meio e escapadelas regulares para, entre outras actividades - visitar Museus e Galerias, ver muita pintura de todos os tempos, encontrar-se com amigos artistas e críticos de Arte - ir à Suiça, contemplar “as suas montanhas”.
Mas a verdade é que Michael Biberstein se sente em casa no Alentejo, e é difícil fazer sair o artista deste lugar encantado, tanto mais que, para trabalhar, ele necessita apenas de percorrer meia dúzia de quilómetros até ao espaçoso hangar que lhe serve de atelier, onde enormes telas em vários estados de concretização esperam pelo gesto do artista, enquanto a música - muito Jazz mas também música clássica e experimental - soa bem alto e as tintas, pigmentos e pincéis se perfilam numa desordem que é apenas aparente. Dentro da propriedade tem outro estúdio mais pequeno, onde produz obras de menores dimensões, um lugar privado que lhe serve de retiro para ler, pensar e imaginar.
Biberstein pinta paisagens - um género com uma longa e nobre tradição - mas o resultado nada tem de óbvio ou de imediatamente reconhecível. Numa entrevista a Maria João Seixas explicou que as suas obras “não são paisagens reais ( e ele) nunca tenta representar uma parte da natureza que realmente existe”. [1]O que lhe interessa é criar atmosferas que funcionam como o reflexo do olhar do espectador, preso num determinado momento por uma visão intemporal e uma sensação específica, num espaço infinito. São muitas as pessoas que confessam passar por experiências muito particulares quando olham as suas telas e se deixam arrebatar pelas visões de lugares fantasmagóricos que parecem emergir da névoa como construções fantásticas da Natureza.
A pintura - e os desenhos - de Michael Biberstein colocam questões muito pertinentes e suscitam controvérsia. Não existem pessoas, animais, objectos, casas ou prédios nos seus quadros, apenas o espaço, esculpido pelas montanhas, pela luz, pelo ar, pelos acidentes do terreno. É um universo primordial, idílico, intocado, imprevisível, por vezes violento, outras, apaziguador. O que muitos dos admiradores do pintor vêm nas suas exposições, é uma espécie de exaltação religiosa, o que contradiz a postura de um homem que diz interessar-se pela Ciência e não pela Religião. A sua paixão pela Filosofia e pela Física bem como o seu interesse pela pintura chinesa e japonesa, são pistas possíveis para a compreensão do seu trabalho. Muitas das suas telas poderiam ser olhadas como uma celebração metafísica, um hino à comunhão com um qualquer Deus. Mas Biberstein rejeita essa leitura - diz-se “agnóstico militante” - e revela as suas intenções em pistas fornecidas pelos títulos que atribui aos quadros: é comum encontrarmos “Compressores”, “ Aceleradores”, “Atractores” e “Planadores” - tudo referências a medidas, massas, velocidades, atracção e repulsão - e os quadros da série “O Sonho de Dirac” de 2004, chamam a atenção para a referência directa a Paul Dirac, o físico britânico que contribuiu para o desenvolvimento da mecânica e da electrodinâmica quânticas, uma matéria que tem sido atentamente estudada por Biberstein e aplicada numa sua pintura.
O conjunto da obra que Biberstein tem produzido ao longo de mais de trinta anos - e que inclui , para além de pinturas, desenhos de uma incalculável delicadeza e esculturas que funcionam como um (contra)peso ao intrínseco carácter etéreo das imagens - é devidamente apreciada nos circuitos internacionais, tendo os críticos sempre valorizado o carácter misterioso da sua arte, o seu questionamento sobre a essência da pintura e o desenvolvimento das noções do belo e do sublime.
Na Galeria Cristina Guerra vai ser possível ver pinturas muito especiais. O artista dividiu o espaço e três grandes telas ficarão na sala principal. Outras ( ou outra) serão colocadas no “corredor” que leva até à escada e ao espaço inferior, mais escuro e intimista, onde ficará a obra que produziu enquanto Fernando Lopes e a sua equipa o filmavam. O documentário do cineasta será projectado ao lado da pintura. Esperamos com ansiedade esta grande e importante exposição.
Galeria Cristina Guerra, Contemporary Art
Rua de Santo António à Estrela, nº 33
Tel. 213 959 559
2 - O FILME
Fernando Lopes diz que este projecto com Michael Biberstein foi como um “sorriso do destino”, parafraseando Joseph Conrad. Os dois homens tornaram-se amigos depois de um dos já célebres jantares na Fonte Santa e imediatamente encontraram pontos de contacto, depois de, durante anos, terem acompanhado e apreciado o trabalho um do outro. A Fernando Lopes intrigava-o a aparente discrepância entre a figura de Biberstein e o seu trabalho. “Tinha curiosidade em saber como é que um homem tão grande podia pintar telas tão delicadas” disse Fernando Lopes com um certo humor. Quanto ao pintor, conhecia bem a obra do realizador, com especial predilecção por “Belarmino”, “Uma Abelha na Chuva” e o recente “98 Octanas”. Foi em amena conversa que ficou resolvido que o cineasta iria acompanhar a execução de um quadro desde a sua gestação até ao momento final. Fernando Lopes partiu da referência fundamental que é o documentário de Henri-Georges Clouzot sobre Picasso, no qual o artista desenha num vidro e as formas vão surgindo como que por magia ,mas cedo se apercebeu que desejava resolver o problema de outra maneira, sem truques nem efeitos especiais, tendo optado por colocar uma câmara fixa, direccionada para o quadro que Biberstein começou a pintar e que era ligada sempre que o artista entrava no estúdio. Este jogo entre os dois criadores - um olhar permanente do realizador sobre o artista que, por sua vez, estava consciente desse olhar - só foi possível graças à confiança e cumplicidade que se estabeleceram entre ambos. Na verdade, o feito de pintar é tão privado que esta intromissão poderia ser considerada como um acto de “voyeurismo”. Mas o realizador filmou com uma equipa pequena, constituída por pessoas muito chegadas e habituadas a trabalhar com o “mestre” que, imediatamente, criaram laços estreitos com o pintor e o seu ambiente. Durante cerca de duas semanas de filmagem, de manhã à noite - quando todos se juntavam para jantar e discutir o trabalho do dia - a câmara registou cada gesto e cada etapa da construção do quadro: o cortar, lavar e secar da tela, a sua colocação na parede, a longa e metódica aplicação das várias camadas de tinta, o tempo de observação e contemplação. Todo este ritual contribuiu, também, para a escolha da trilha sonora que acompanha o filme. O silêncio e os pássaros evocaram “Le Réveil des Oiseaux” do compositor e ornitologista francês Olivier Messiaen, um mestre do mistério e das variações simbólicas que contribuiu para acentuar a atmosfera intimista deste “bailado a dois”. E não se fala aqui de dança por acaso. Fernando Lopes é um grande documentarista e, entre outros, dirigiu um filme dedicado à coreógrafa e dançarina Pina Bausch. Esta peça que, no seu todo, tem mais de 30 horas de filmagens, foi uma experiência diferente em torno de um produto artístico muito distinto. No entanto, e de acordo com o realizador, o trabalho sobre Biberstein é “ melhor do que o (que fiz sobre) Pina Bausch”. E acrescenta: “as imagens vão surgindo como num processo mágico, alquímico”, o que produz um efeito “muito fora do comum.” E conclui: “Percebi que o olhar do pintor não é muito diferente do de um cineasta. Até propus ao Mike trocarmos de lugar!”.
“Mike ao Trabalho” é o título do documentário de Fernando Lopes sobre Michael Biberstein