segunda-feira, 25 de março de 2013

Comunicação Correntes de Escritas

Comunicação Correntes de Escritas, dia 22 de Fevereiro, 2013, 10:30 h

Helena Vasconcelos

De que armas disporemos, se não destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia da polis, resgatada
Hélia Correia, “A Terceira Miséria"


Falemos de POESIA e deste livro de combate que é "A Terceira Miséria"  de Hélia Correia – de onde foi extraído o verso desta Mesa

Foi há mais de 300 anos antes da nossa era, que Aristóteles compôs aquele que é considerado como o primeiro tratado de teoria literária – a Poética – onde nos dá uma visão do que ele chama Poesia, um termo que, como todos sabem, quer dizer em grego “fazer”. É claro que Aristóteles remetia para o Drama – que incluía a comédia, a tragédia, a sátira, o poema lírico, o épico e o ditirâmbico – e foi nos seguintes termos que avançou com a sua teoria: 
“Proponho-me tratar a poesia em si mesma e nos seus vários géneros; não apenas as qualidades de cada um deles, mas também a questão da estrutura da trama – para que se alcance um bom poema – e, mais ainda, tudo o que seja abrangido por estas mesmas questões. Desta feita, pela ordem ditada pela Natureza, comecemos por aquilo que vem primeiro.”

Esta mesma obra tem sido objecto de inúmeras, diria mesmo infindáveis, discussões, até porque foi composta em resposta à ideia de Poesia do seu mestre Platão que, em “A República” argumentou que a Poesia é mera representação de aparências e, por essa mesma razão, perigosamente enganadora e moralmente suspeita. Creio que Platão era um fantástico agente provocador, senhor de uma ironia notável e que o sentencioso Aristóteles, com toda a sua carga intelectual, é mais enfadonho. A sua aproximação ao texto serve para descrever as suas funções sociais – a utilidade ética da Arte – enquanto que Platão, sem grandes contemplações, consciente da força insuperável da Poesia – das palavras usadas pelos Poetas e poetisas, desse “fazer” – veicula a ideia de que estes, os poetas e poetisas deveriam ser banidos de uma sociedade perfeita.

Mas, também, quem é que quer viver numa sociedade perfeita que nos possa custar o desaparecimento da Poesia?
Suponho que queremos uma sociedade com Poesia, com essa dinâmica do “fazer”.

(Um parêntesis para lembrar que, com Hélia Correia conhecedora da Cultura Clássica, quedamo-nos no centro da questão: Recordo, para já, o grande historiador alemão do Renascimento Abraham (Abby) Warburg que utilizou o termo “onda mnémica” para definir esse refluxo e expansão que sofremos em relação à nossa matriz cultural, ao nosso passado “habitado pelos pensadores e deuses da Grécia” que nos deixaram uma vasta matéria de reflexão e estudo.)
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É claro que a perfeição não existe – os gregos sabiam-no e, por isso, criaram as suas estátuas que obedeciam a complicadas e rigorosas regras criadas no sentido de tentarem alcançar essa quimera suprema.
Hölderlin, o grande poeta idealista que sonhava com a Grécia e procurava insistentemente expressar uma visão mística na qual o ser humano se reconciliaria com a Natureza e com todas as formas do universo, acabou pobre, abandonado pelos familiares, a escrever versos, fechado numa torre
Nietzsche, na sua loucura, vampirizado pela irmã e pelo cunhado fascista que lhes distorceram as palavras e o pensamento, aproximou a Poesia da Música e referiu, em "A Origem da Tragédia, esses deuses, Apolo e Dionísio que para ele representavam um contraste flagrante, tanto nas origens como nos propósitos, entre as artes visuais (plásticas), apolíneas, e as artes não visuais, a música e a poesia (dionisíacas).”   

Assim, faço questão de perguntar de novo em relação à Poesia: o que representa? Qual a sua força? Ah, e já agora, uma vez que vivemos numa sociedade utilitária,” para que serve”? Como aliás, Hélia Correia começa por dizer em “A Terceira Miséria”, questionando, na sua infinita sabedoria, algo muito pertinente: “ para que servem os poetas em tempos de indigência?”

De onde vem a Poesia? Do cérebro como afirma Freud? Do corpo, desse corpo que segundo Hélia Correia “contém as armas” do pensamento que nos leva a resgatar a ideia da polis? Do coração, desse órgão vital e palpitante que representa a vida esfusiante, como clamavam os românticos? Dos dedos ágeis da poetisa ou do poeta que pega na pena ou na caneta – ou martela o teclado do computador? Dos seus músculos – porque há poesia bem musculada? Da sua língua que murmura palavras? Da sua “alma” esse lugar misterioso, recôndito e abstracto?
Sigmund Freud afirmou que o cérebro é exactamente um órgão fazedor de poesia. Para ele, a Poesia seria uma espécie de emanação proveniente do inconsciente – mais tarde alterou um pouco esta ideia – mas, o importante é que Freud transformou por completo a ideia da poesia. De um sopro dos deuses, da inspiração divina como proclamavam os Antigos, passou para um funcionamento orgânico o que, diga-se de passagem foi bastante subversivo mas absolutamente consistente com a sua época. Para Freud o cérebro funciona sob o garrote da lógica mas a poesia, como outras manifestações (os sonhos, por exemplo) escapam a essa tirania, partem daí e soltam-se. E embora façam parte integrante do poeta, habitando o seu eu corpóreo, a sua mente, onde se encontram enrolados como gatos, mais ou menos adormecidos, estão prontos a saltar e a escaparem-se no dorso das palavras. Um acto de libertação, em suma.

Agrada-me a ideia da Poesia ligada à liberdade.
Agrada-me a ideia de Shelley na sua  Defesa da Poesia  quando afirma orgulhosamente que  “Um poema é a própria imagem da vida, expressa na sua verdade eterna”
O grande romântico era romântico e impetuoso mas não era nada tolo.

Se pensarmos ainda em Aristóteles, recordemos que a Poesia deve provocar a “catarse” – um processo de que fala o filósofo grego (ainda não se sabe bem de que se trata verdadeiramente) – catarse essa que se supõe ser aquilo a que se chama “purga”.

E que felizes seríamos se os políticos contemporâneos, que se impõem a nós com violência cega e sem freio, lessem Shelley, Holderlin, Nietzsche, Maria Teresa Horta, Hélia Correia, tantos, tantos poetas e poetisas que pronunciam as palavras justas e certeiras, que constroem o discurso da justiça e da liberdade? Que bom seria se os fracos legisladores de agora trocassem a malfadada austeridade, a carga feroz sobre as nossas costas – que provoca o desequilíbrio, a queda e o desmembrar do tecido da “polis” – por doses maciças de Poesia para nos “purgar” definitivamente!!!
Vivemos um tempo de hecatombe, de holocausto cultural. Dos grandes pensadores restam poucos, George Steiner, Claudio Magris, Eduardo Lourenço – da autoridade do pensamento, da filosofia e da poesia passámos a estar sujeitos ao despotismo financeiro. Estamos à mercê de banqueiros e economistas. É preciso pegar em armas, essas armas de que fala Hélia Correia, as de que dispomos, o nosso corpo, a nossa voz.
Regresso a Percy Shelley – Ele que gritou bem alto “somos todos gregos!” – que escreveu quase no fim da sua  “A Defesa da Poesia”:
“O mais fiel arauto, o companheiro do despertar de um grande povo para operar uma mudança benéfica nas opiniões e nas instituições, é a POESIA… e acrescenta: Os poetas são os hierofantes de uma inspiração inapreendida; os espelhos das gigantescas sombras que o futuro lança sobre o presente; as palavras que exprimem o que não compreendemos; as trombetas que conduzem à batalha e não sentem o que inspiram; a influência que não é movida, mas move.”

E termina desafiadora e orgulhosamente:

“Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo.”

Pois eu digo que devem, agora, ser reconhecidos e seguidos. Para um bem maior, o de todos nós.

Helena Vasconcelos
Fevereiro, 2013-03-25 Correntes de Escritas, Póvoa do Varzim