segunda-feira, 15 de junho de 2009

"A Vida em Surdina"



Imaginem uma história que trata do declínio físico, da morte, da perda, do medo, da decadência mental e de todos aqueles indícios - por mais pequenos que sejam - que nos mostram, em cada dia, ao acordar, que o tempo está a passar a uma velocidade vertiginosa e que, mais coisa menos coisa, vamos "bater a bota", "ir desta para melhor(?)", "esticar o pernil", "subir ao céu", "ir para os anjinhos", com a agravante de, antes, passarmos por certas humilhações, dores e sofrimento que, se não tivermos sorte, não nos matam depressa.

Imaginem que, ao ler o livro que conta esta história - centrada na personagem de Desmond Bates, professor de Linguística reformado e surdo como uma porta - não podem impedir-se de rir às bandeiras despregadas. Quem não leu "A Vida em Surdina" poderá pensar que é improvável que um herói tão pouco apelativo - não ouve nada, faz confusões com tudo, tem uma performance sexual que deixa muito a desejar, é assediado por uma jovem mas esse facto só lhe traz incómodos e complicações indesejadas, trata do pai com oitenta anos com alguma relutância, a primeira mulher morreu com um cancro, a segunda é uma empresária bem sucedida - possa despertar um interesse e uma empatia tão grande. O facto é que entre os risos loucos e as lágrimas, o leitor acompanha um determinado tempo da vida de algumas pessoas que lhe irão ficar na memória.

Não vos vou contar a história. O essencial está na contracapa do livro e o resto terão de descobrir por vós próprios. Mas gostava de chamar a atenção para algumas pistas: David Lodge ficou conhecido pela sua enorme erudição temperada pelo humor em obras que descrevem como ninguém a vida universitária, com ecos de Kingsley Amis e Malcolm Bradbury, seus dignos antecedentes no género. Aqui, esse mesmo universo distancia-se a toda a velocidade, uma vez que Bates - decalcado do próprio Lodge como ele faz questão em sublinhar numa nota final - está reformado (a princípio com uma sensação de alívio, gradualmente com uma sensação de perda) e as suas tentativas para se dedicar "à pesquisa" e a coisas que não tivera ocasião de fazer antes, lhe parecem muito pouco apelativas. Mesmo o assédio de uma aluna americana da sua antiga Escola que o lisonjeia e provoca , não chega para o fazer sair da modorra que o tempo livre e principalmente a surdez lhe proporcionam.

De notar, ainda, como Lodge cria um sub-plot - a história bastante aflitiva com a jovem estudante - para criar um certo suspense erótico e não só, como trata as relações familiares contemporâneas com profunda sensibilidade, como fala do casamento e do amor filial em termos absolutamente brilhantes e , ainda, como "alivia" a tristeza da própria condição do narrador - na 1ª e 3ª pessoas - e a da existência do seu pai ( teimoso, só, cheio de manias, doente) com momentos hilariantes, principalmente à custa da própria deficiência que lhe cria momentos de grande embaraço, tendo em conta os mal entendidos que provoca. A relação com a segunda mulher, Fred ( diminutivo de Winifred) é, mais uma vez, magistralmente tratada. Com o seu nome masculino, Fred está em perfeita décallage temporal e física do marido. Tem muito sucesso e ganha dinheiro com um trabalho que lhe dá prazer, fez algumas plásticas que a rejuvenesceram consideravelmente e parece estar no período mais esplendoroso da vida, com os filhos criados, uma vida social intensa e aberta a grandes sensações e emoções. A forma como este casal se afasta e aproxima é um dos musts do livro, bem como a forma como Lodge trata a cena da reunião da família no Natal. Acreditem, não podem perder. É tudo aparentemente muito simples, as personagens não podem ser mais humanas e a escrita é clara e sem floreados, embora de um rigor extraordinário. David Lodge, o escritor britânico e católico que sabe descrever as dores mais comuns dos seres humanos - a solidão, a perda, a incompreensão, a velhice, o desespero - é, também, capaz de lhes contrapor a esperança, o amor e uma espécie de ternura nada sentimental mas poderosa. Bates, como figura principal, olhado por si próprio e "de fora" é um pólo catalizador de grandes emoções: a solidão partilhada com o pai, a memória terrivelmente dolorosa da primeira mulher, a fricção erótica com Alex ( a jovem estudante) aliada ao medo do ridículo, a distância (ainda) cúmplice com o ambiente do campus, o afastamento, pelo menos aparente, em relação a Fred. Um retrato trágico e cómico de um homem de idade, das suas limitações e vitórias e, principalmente, da sua (cruel) condição humana.

3 comentários:

Gotinha disse...

Adorei este livro. Aliás... David Lodge é um dos meus autores favoritos.

cris disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
cris disse...

Coloquei um link deste seu comentário no meu blog, espero que não se importe.
Também gostei mto deste livro mas o final soube-me a pouco.
Boas leituras!
Cris de O tempo entre os meus livros